Sábado, 29.03.08
id="BLOGGER_PHOTO_ID_5182999991350902290" />
É engraçado apanhar o 701 em frente ao Jardim Zoológico depois das 21h30m, quando já só faz o percurso Sete Rios-Campo Grande e vice-versa. É como se fosse um transporte particular com chauffeur e tudo porque, frequentemente, sou o único passageiro à espera da sua partida e já me aconteceu fazer o trajecto todo sozinho com o motorista até ao meu destino.
Uma viagem de autocarro pode ser muito aborrecida. E, normalmente, é. Porém, é esta monotonia previsível que torna digna de um filme a quebra inesperada. Quem circula regularmente numa carreira qualquer sabe do que estou a falar. João César Monteiro registou-o mesmo na sua derradeira obra "Vai e Vem". Sobre esta, não me posso pronunciar porque não a vi. Fica para outra altura. Vou somente contar um filme, que é meu.

Em breve, poderão ver o resto...


publicado por garçon às 00:04 | link do post | comentar | ver comentários (3) | favorito

Sábado, 23.02.08
O Carlos ia a andar pela praia num dia assim esquisito em que fazia sol dum lado e estava nublado do outro. Conseguia ver a aglomeração de nuvens cinzentas no alto-mar enquanto sentia o calor suave dos raios luminosos, já bastante oblíquos, em ângulo agudo com o espelho de água à sua frente.
Caminhando para a beira d’água, apreciava com olhar fotográfico as lombas de areia que se alternavam até perder de vista, paralelamente à linha de rebentação. Era espantosa a calmaria que se vivia agora, depois das marés vivas da véspera. Carlos apenas via os cimos de areia pensando que bem podiam estar pessoas escondidas entre um e outro, naqueles vales efémeros.
Ao molhar os pés, constatou que não havia ninguém nas proximidades. Só ele e a ausência das gaivotas que por ali passaram sobre o tapete liso e ondulado. Podia ver que tinham sido muitas pela quantidade de marcas no chão e indagava ao céu onde estariam agora. Provavelmente em Lisboa, sobre o Chiado ou no Parque das Nações à espera que o temporal passasse. Talvez estivessem no Cais do Sodré a pôr a conversa em dia com os pombos da praça.
Sentindo os pés gelarem, Carlos afastou-se da água que lhe chegava e partia com lentos murmúrios e nenhuma espuma e sentiu desejo de se estender entre dois montes de praia e ficar ali resguardado como numa trincheira de batalha. Assim fez e deixou de ouvir a guerra da terra para dar ouvidos apenas à paz do oceano.
Quando se apoiou no cotovelo direito para se virar de bruços, sentiu algo pontiagudo a espetar-se contra o osso de tal forma que teve um reflexo rápido de dor e ficou com o braço dormente até ao ombro durante uns segundos. Primeiro olhou para o cotovelo para verificar os danos, inexistentes afinal, e só depois perscrutou a areia no sentido de conhecer a origem da picadela. Viu um bico metálico à tona da areia e logo escavou à volta, com precaução, desenterrando – qual icebergue fora d’água – um facalhão enorme, gigante mesmo, como nunca tinha visto antes. Mais parecia uma catana daquelas que via em documentários da National Geographic.
O cabo era trabalhado com relevos e pedras incrustadas bastante gastas e a lâmina apresentava manchas de ferrugem, líquenes e alguns bivalves minúsculos fossilizados e, de um dos lados, uma inscrição gravada em inglês: “Eternity is in your hands only if you can handle it”. “Weird!”, pensou Carlos e riu-se de ter pensado em inglês.
Olhou para o mar à espera de respostas. A superfície parecia estar agora completamente paralisada, como numa fotografia, irrealmente quieta e transparente de tal modo que podia ver-se tudo o que acontecia no fundo. Era como se um mundo submarino estivesse separado deste por um vidro novo e polido. Os peixes circulavam em cardumes, as medusas deixavam-se levar pela corrente invisível (o vento submarino) e as algas formavam alamedas e encruzilhadas e, nos canteiros que rodeavam, cresciam corais de todas as cores.
Em cima de duas sardinhas do tamanho de cachalotes, aproximou-se da praia um ser híbrido, metade pernas de homem – musculadas, peludas, bem definidas e torneadas até aos genitais volumosos – e metade cabeça e barriga de peixe – escamosas, luzidias, inexpressivas e de guelras quase fechadas para cortar melhor o caminho. Abriu-as ao máximo já perto do Carlos e ficou com elas abertas a encher-se de ar até recuperar o fôlego.
Carlos não podia deixar de olhar para os genitais do peixomem por serem absurdamente grandes para a espécie humana. O peixomem desmontou das sardinhas e estas voltaram ao mar mais depressa do que vieram. Deu três passos para a frente e Carlos, então sentado, ficou com os olhos tão perto dos genitais monstruosos que não os conseguia ver no seu todo, levando-o a olhar para cima para focar a vista naquela cabeça de peixe afunilada para o céu. Na posição em que estava (de lado, ao contrário da metade humana), mostrava só um canto da boca a babar-se e um olho mortiço e seco. Preparava-se para falar quando ouviu uma voz gargarejar.


publicado por garçon às 17:53 | link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
links
Junho 2009
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

29
30


posts recentes

701

O peixomem (título provis...

arquivos

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

tags

acesso ao casamento

bem disposto

clássicos

coisas de contar

conta como podia ser

contra-buplicidade

dança

desafio

desliguem os telemóveis.

direitos assertivos

direitos humanos

é o drama

flores

hobbies

igualdade

jazz

jazz foi

jazz fresquinho

mundo engraçado

mundo feio

o virar da página

objectivamente (fotografia)

olha pra mim

pessoas

poesia

ponto de escuta

prosa

quem sabe...

sweet sadness

todas as tags

blogs SAPO
subscrever feeds