O rapaz bem queria levar o piano consigo mas este não cabe na bagageira infelizmente. Devia haver um que fosse desmontável e se pudesse levar numa mala de viagem para qualquer parte. Mas o catálogo do IKEA 2009 não parece ter nada parecido. Custa tanto ao rapaz separar-se do seu instrumento durante dias. Como é que ele vai ficar? Amuado com certeza no meio da sala como costume mas amuado. O rapaz não tem culpa, pensa. Pelo menos fica em casa. Não tem que ir para um hotel como certos cãezinhos mimados. Mimado ele é! Mas muito orgulhoso também. Por isso, o piano bem pode pensar na sorte que tem em não ter que sair pela porta para satisfazer necessidades que todos os donos prefeririam que os seus amestrados não tivessem. Pode ficar ali, naquele lar quentinho, quietinho, no centro das atenções dos visitantes e cobiçado por alguns que lhe poriam a mão com a devida autorização do rapaz. Porém, não há permissão que alegre a saudade e toda a tentativa de transformar o Jazz na Praia em festa acabaria chorosa nota após nota. O único com quem o piano afina é o rapaz. São só uns dias, lindo piano, em breve sorrirá outra vez e nem se lembrará da distância do passado.
Querida Laura,
Vergonha. Como exprimir a vergonha através do teclado de um piano? Pensou o rapaz. Como é que se pode tocar a vergonha? Não sentirá o tocador vergonha ao tocar? Não esconderão a cara os ouvintes ao ouvir o que toca? Não desafinará a tecla tocada com vergonha... Que lhe toquem assim?
E onde é que está a vergonha? A vergonha esconde-se debaixo da cama. O cão iria ao seu encontro, farejando, se não estivesse morto à beira da estrada a ver os engarrafamentos matinais. Uma pata no ar em sinal de protesto. A caravana continua a passar e nada.
A vergonha não é maior que a estupidez. Às vezes, ela própria se perde e grita "Estúpido!" A criança procura um esconderijo mas nenhum chega para esquecer. Mais tarde, muito mais tarde, encontra o refúgio perfeito atrás de uma melodia que lhe tapa a cara. Obrigado, pianista! Logo, encontramo-nos debaixo da cama?
Espero que sim e todos os que aqui estão. Menos o cão, cuja pata no ar se decompôs, resignado, e assim, triste, emagreceu, emagreceu e emagreceu até não restar mais nada senão uma mancha, um sinal não de protesto mas sim de perigo, a indicar ao trânsito a perda de dignidade.
"O meu único ressentimento contra a natureza devia-se a não poder virar a minha Lolita do avesso e colar uns lábios vorazes à sua jovem matriz, ao seu desconhecido coração, ao seu nacarado fígado, às uvas marinhas dos seus pulmões, aos seus graciosos rins."
Humbert Humbert in Lolita de Vladimir Nabokov
Deixa-me ver-te nú. Completamente despido. Despido do casaco perfumado com a tua água de colónia masculina. Primeiro, tira o cachecol enrolado à volta do pescoço e faz-me crescer água na boca com a tua maçã de Adão provocante. Sem o casaco, a malha também não faz falta. Desliga-te da camisa engelhada pelo trato que o teu corpo lhe deu. Puxa para fora de ti as pernas das calças e com os teus dentes tímidos para mim sorri. Despe-te de tudo. Não te esqueças das meias. Quero adorar os teus pés sagrados - abençoado é o chão que pisam! Não tens luvas? Ainda bem porque assim posso ver o desenho das tuas mãos milagrosas. Oh homem, que doente que eu estou! Descola-te a pele e leva o cabelo e as pestanas e as sobrancelhas e as tuas patilhas viris e todos os teus pêlos junto com o couro para o cesto da roupa suja. Descobre a tua côr natural. Desfia a carne que te tapa sem medo de apanhar frio. Estão 37º mas parece-me mais. Arranca as veias e as artérias e todas as vias congestionadas e pendura-as no cabide do quarto, no bengaleiro atrás da porta, nos toalheiros e no sítio dos panos da loiça, até não haver mais nada. Enrola os nervos num novelo e guarda-os no baú das recordações. Deixa-me ver-te nú. Sem nada. Só coração e fígado e pulmões e rins. Põe o cérebro no caixote do lixo orgânico. Não precisas dele. Sente apenas o bater da minha substância na tua. Cada concerto nosso faz com que o caos se complete e recria o mundo. De novo, os ossos encaixam e as medulas restam sossegadas. Deixemo-nos ficar assim para sempre, despojados de alma, desprovidos de matéria corrupta, limpos de natureza. Só o universo e a possibilidade de qualquer coisa.
O pianista pediu ao rapaz que trouxesse um sumo de laranja natural e uma tosta de frango sem tomate mas com o molho da casa. Era uma manhã luminosa e pacífica na praia e o ar parecia suspenso não fossem levres sopros espaçados como as ondas discretas da maré baixa. Antes de entrar no Jazz, o rapaz pensou em pedir-lhe que tocasse no piano algumas das suas sonatas favoritas. Ao voltar, encheu-se de coragem e, poisando o prato e o copo na mesa, perguntou. O extravagante pianista, no melhor sentido da palavra extravagante, olhou à sua volta e realçou que não havia público suficiente para o fazer mexer-se dali para dentro. Além do mais, não trocava um lugar ao Sol, literalmente, por um interior. Só se lhe trouxessem um piano ali mesmo é que ele faria o obséquio de deitar música fora. O rapaz disparou que ia logo tratar disso. Passados quinze minutos, já o pianista se sentia satisfeito e novamente de bem com o seu estômago, eis que vê aproximar-se um piano tal qual um caixão transportado por três pessoas de cada lado. Uma delas era o rapaz. As outras cinco eram amigos e amigas do rapaz, que lhes ligara com urgência para que viessem ajudá-lo. Recompensá-los-ia com um concerto imediato totalmente gratuito e num cenário invulgar. Com efeito, nenhum deles nunca antes tinha visto um instrumento daqueles com os pés enterrados na areia. O extravagante Sr. Pianista lançou um sorriso rendido e trocou de cadeira, para a do piano, embora lhe custasse teclar sentado noutra coisa que não fosse um banco acolchoado. Não prometia um desempenho excelente mas pagava o esforço do rapaz. Assim que as primeiras notas cortaram o som das ondas, foi como se o universo se tivesse dispersado todo dali para longe, ao contrário do efeito de um buraco negro. Dali, daquele sítio central, se partia e não se chegava. Minto. Uma gaivota chegou devagarinho, pairando, deu duas voltas ao recinto improvisado, aproximou-se, hesitou e subiu de novo, e, entre um dó e um fá, voltou à terra e pousou a certa distância das costas do artista. Depois, veio mais uma. A seguir outra. Mais duas, juntas. Até que muitas aves rodearam tudo e todos e cativaram o génio de um homem que pensava que podia desperdiçar o seu talento facilmente numa praia qualquer. Só que esta era uma praia encantada.
"A autobiografia da minha mulher era tão desprovida de interesse quanto o seria a sua autópsia."
Humbert Humbert in Lolita de Vladimir Nabokov
Seria engraçado se, numa autópsia, se reconhecessem as marcas de felicidade e de tristeza que alguém sentiu. Uma série de alegres sinais recompensaria a operação fria do médico legista. Por exemplo, um coração dilatado a roubar espaço aos pulmões indicaria a asfixia sentida pela existência de muito amor. Quanto mais brilhante fosse o fígado, mais risos teriam saído daquele corpo ainda a sorrir. Se os miolos estivessem moles e soltos, seria porque em vida souberam encontrar a serenidade de um espírito são. Mas se os pulmões se encontrassem raquíticos e secos, das suas ramificações teria sido chupada toda a água insuficiente para manter escorridos os olhos de desespero. Quanto mais mirradas as tripas se apresentassem, maior a privação a que teriam sido obrigadas. Os rins da côr do fel colocariam em horrível evidência a prolongada existência de orgasmos nulos. Então, o médico fecharia a carne com tudo lá dentro e voltaria para casa depois de um dia mau de trabalho, assim, a pensar que mais cedo ou mais tarde iria encontrar alguém feliz outra vez.
O rapaz vai com o cotovelo apoiado na porta do carro e os nós dos dedos a apoiar a cabeça pesada ao mesmo tempo que belisca a bochecha esquerda com o polegar e o indicador. À frente, Monsanto. Uma fila de luzes brancas desce enquanto uma fila de luzes vermelhas sobe na mesma via serpenteando entre as matas. A noite envolve as viaturas que circulam lentamente como numa procissão sem espectadores nem participantes entusiasmados. À esquerda, o motor vai abaixo cada vez que pára. À frente, mesmo à frente, 21-EM-21. À direita, o conforto dos lares ilumina vagamente. Alguém tira qualquer coisa do microondas. No andar de baixo, umas costas viradas para o rapaz, um cabelo curto, de homem, imóvel. Que estará a fazer? Na janela ao lado, um abat-jour pinta o interior de amarelo torrado. O sofá vazio convida a entrar. Apeteceu ao rapaz esquecer tudo e partir. A pé. Rumo à ponte e ao outro lado. Mas teve medo de ir sozinho. De não ser compreendido. De ser maltratado. Então, sozinho ficou de pensamentos descaídos, olhos mortos, mão espalmada no pescoço e cotovelo de fora, recebendo a escuridão fresca, ouvindo Johann David Heinichen e mexendo o volante com a ponta de um dedo.