
O melhor de se começar a noite lisboeta tarde é que termina igualmente tarde. Ou cedo, para quem acaba de acordar. Digo que é o melhor porque permite assistir ao amanhecer de uma cidade diferente da do meio-dia. Diferente ainda da cidade do entardecer e da cidade do anoitecer. Esta semana tem sido óptima para ver o nascer de Lisboa, com o céu limpo e uma luz que deixa tudo a descoberto com a maior nitidez.
Com a cidade sinto-me amanhecer também, quando estou sozinho, e há algo de renascimento nisso como se o novo Sol viesse mais forte e queimasse tudo o que é passado e só lhe interessasse o novo dia. Tudo é novo. E limpo. E há tanto tempo para aproveitar.
Quando a solidão me abandona para dar a vez à companhia, vamos ao café Suíça comer uma torrada, eu, uma pastelaria fresca, tu, café com leite, os dois. Vamos ensinar aos sentidos o acto de sentir que ficou esquecido de um dia para o outro. Vamos aprender que é bom saborear, donde vem este cheiro apetitoso, o que aquece o corpo e a alma, como são bonitos os teus olhos e a vontade de me agarrar, ouvi-te dizer. Que coisa é esta que sinto por dentro, não calor, não físico, que sentido sente assim não sei bem o quê?
O amanhecer apaga a sujidade da noite e prolonga o que resta de bom, como um beijo roubado à pressa com medo que a luz do dia o deixe para sempre inexistente na cave nocturna. Um beijo que a manhã afinal recebeu e que, no entanto, se escondeu dela num vão de escada para não ser queimado mas sim acusado de fogo posto.
No amanhecer, quantos beijos foram trocados, quantos ficaram por dar, quantos corpos imolados e quantos vãos de escada assim purificados?