Segunda-feira, 31.12.07
«Diogo & Carmensita - Noite de Consoada»
«Chove! Chove lá fora. Ai como chove! As escovas do pára-brisas não
param. O barulho no exterior é ensurdecedor. O vento é ensurdecedor.
Os trovões são ensurdecedores. O carro pouco os protege. Faz-se sentir
algum frio, mesmo com o ar condicionado. Nunca mais chegam ao destino.
Já nenhum dos dois suporta tanta demora. A poucos metros vêem os raios
a serem engolidos pela terra. A tempestade ameaça-os. A noite está
densa e os perigos estão à espreita.
É dia 24 de Dezembro. Aliás é já noite. A noite de consoada. Temos
Diogo e Carmensita . Estão já a poucos quilómetros de Fronteira, no
Alentejo. Vêm desde Lisboa. Rapidamente se pôs noite. E assim que
chegaram ao Alentejo começou a chover e a trovejar. No rádio ouve-se
agora um CD de Natal que Diogo fez questão de trazer: The Best
Cristmas Album In The World.
Carmensita já não suporta mais aquela tempestade. Está inquieta como o
tempo. E a viagem até casa dos seus pais parece estar a demorar uma
eternidade. Uma eternidade angustiante. As canções natalícias estão a
irritá-la de tal maneira.
Diogo está mudo, tenta conduzir com a maior das cautelas por entre as
curvas tortuosas da estrada. Não quer que cheguem atrasados, mas
também não quer colocar nenhum dos dois em risco. Amaldiçoar-se-ia se
algum mal acontecesse à su Carmensita .
Esta não consegue de maneira nenhuma sossegar. Há qualquer coisa que a
aflige. Só não sabe bem o quê. Já nem são as cantorias de Feliz Natal.
Não tem medo de trovões, relâmpagos, ou raios. Mas vê-los ali tão
próximos tanto a assusta como a fascina. "Quem me dera ter aqui uma
máquina fotográfica!", pensa alto distraidamente.
- Que disseste? - pergunta-lhe Diogo.
- Hã ?!? Como? - disse Carmensita.
- Que disseste? Não percebi!
- Não sei! Acho que não disse nada...
- Foi qualquer coisa sobre não teres máquina fotográfica... - insiste Diogo.
- Ah! Era o que estava a pensar... Há uma beleza estranha nos
relâmpagos. E apetecia-me fotografá-los. Já reparaste no poder que
emanam? - pergunta Carmensita.
- Não estou muito atento aos relâmpagos... Com esta tempestade,
preocupa-me mais a estrada. Sabes melhor que eu que estas estradas do
Alentejo são muito perigosas. - tenta-se justificar.
- Sim! Claro! Tens razão!
- Mas tenho aí a minha máquina fotográfica... está na minha pasta no
banco de trás. - disse por fim Diogo.
- Oh! Já podias ter dito... Pára o carro! Quero ir tirar umas
fotografias. - barafusta Carmensita.
- Agora? Já estamos atrasados e ainda devemos demorar uma boa
meia-hora ... - choraminga.
- É só por alguns minutos. Eu tiro umas fotos rápidas e vamos logo
embora. - pede Carmensita.
- Mas vais ficar toda molhada... - lamuria.
- Não faz mal! Eu depois seco-me na lareira dos meus pais. Não te
esqueças que ainda lá tenho roupas minhas.
- Só se forem vestidinhos às florezinhas de quando eras miúda... -
graceja Diogo.
- Vá! Pára lá o carro se faz favor. - ordena Carmensita.
- Está bem! Está bem! - Assim que Diogo pára o carro, Carmensita
avança pela tempestade adentro de máquina fotográfica em punho. Os
únicos flashes que se vêem são os da máquina e os relâmpagos. Passados
poucos minutos de estar no exterior Carmensita fica totalmente
encharcada . Não só encharcada pela chuva como também pela emoção. A
emoção de estar assim tão perto dos raios. Os raios já não ferem a
terra, penetram-na, são uma forma de a fertilizarem...
- Sai daí! - implora Diogo. - Vamos embora!
- Sim, vamos já. - Carmensita entra muda no carro. O silêncio agora
impera. Diogo desligou finalmente o rádio. Deixa de repente de chover,
como que por um passe de mágica. Todo o temporal se desvanece. Raios,
trovões e relâmpagos desaparecem do céu. A viagem continua em
silêncio, agora bem mais calma. A mão esquerda de Carmensita procura a
direita de Diogo, pousada na alavanca de mudanças. Acaricia-lhe as
veias salientes. O amor que ambos sentem um pelo outro reflecte-se
neste pequeno e simples gesto. Agora sim poderão proseguir pelos
poucos quilómetros que faltam e ir cear tranquilamente como a época o
exige.»
autoria:
Luís V.
Segunda-feira, 26.11.07
IRIS OUT:
No domingo em que faltava um mês para o Natal, houve uma grande discussão em família. Eu e o Rui fomos almoçar aos meus pais e a minha irmã, o meu cunhado e a minha afilhada também foram. Estávamos todos à mesa e o meu pai, enquanto esticava o braço por cima da travessa para apanhar o galheteiro do outro lado, perguntou:
-Então, como é que vai ser o Natal este ano?
Eu olhei para o Rui e ele olhou para mim quase ao mesmo tempo e percebi logo que ele não voltava atrás na convicção de passar a Consoada junto dos pais dele. Já tínhamos falado sobre isso em casa e ele argumentou que no ano anterior a noite foi passada com a minha família, logo, desta vez era justo que fosse com a dele. A minha irmã foi a primeira a dizer alguma coisa:
-Eu e o Francisco gostávamos que fosse lá em casa este ano. As obras já estão quase terminadas e ainda vamos ter a sala praticamente toda livre antes de arrumarmos tudo. Assim aproveitamos melhor o espaço para pôr a mesa e a árvore de Natal pode ser maior.
A minha mãe gostou logo da ideia e disse que ia logo de manhãzinha para ajudar a ordenar tudo e a preparar os cozinhados. O meu pai olhou para mim e para o Rui com ar de inquisição mas sorriso malandro, pois, já sabia o que viria da nossa parte.
Mantive-me calado uns segundos para dar oportunidade ao Rui de falar, mas tive que ser eu a tomar a iniciativa. Ele não é capaz de contrariar os meus pais, que sempre foram tão bons para ele.
-Eu e o Rui já decidimos à partida que vamos ao Cartaxo.
A minha mãe, a pessoa mais expressiva na família, desferiu logo um Ooh! curto e grosso e exclamou:
-Não pode ser! Como é que tomam uma decisão sem falar primeiro com a gente? Não pode ser assim, nós queremos muito estar com vocês e não sermos sequer chamados ao assunto é mal feito!
Enquanto o meu cunhado explicava que já tinham planeado os lugares todos e que a sala ia ficar muito vazia e fria sem nós, o meu pai encheu de novo o copo de vinho do Rui. A minha mãe fiscalizou o gesto e olhou para mim como quem diz: "Olha que o teu pai ainda embebeda o teu homem mesmo sabendo que é ele que vai conduzir, parece que não o conheces."
O Rui parece ter percebido o mesmo que eu (deve ser dos anos de convívio com a minha mãe) e disse polidamente e a brincar:
-Sr.Carlos, já terminei, obrigado. Olhe que o seu filho está-me a controlar.
O meu pai riu-se à gargalhada e defendeu que na casa dele quem controlava era ele e a sua dona e que se ele quisesse beber, que bebesse.
Eu ri-me mas mais me apetecia responder-lhe torto. Era sempre a mesma coisa e o Rui nunca era capaz de dizer não até ao ponto de termos de fazer tempo para lhe passar as tonturas e ir para casa. Quem se ocupava dele depois era eu, claro.
A minha mãe aproveitou e bem:
-Então se a dona aqui também manda, mando que pares com isso e mando que estes dois rapazes venham passar o Natal aqui e não refilem - piscou-me o olho.
-Os meus pais vão ficar muito chateados se não estiver lá outra vez este ano - disse o Rui finalmente - Já no ano passado ficaram tristes mas compreenderam. Agora, querem que seja o Miguel a vir comigo ao Cartaxo, é à vez.
-Vão lá almoçar no dia seguinte - replicou a minha irmã, que parecia mais indignada agora pela justificação da recusa - eu até já falei com o Quim dos bolos para me preparar os bolos-rei e um Molotov e uma lampreia de ovos a contar convosco.
Aí, eu tive que dizer:
-Ah! Então não fomos os únicos a decidir antecipadamente!
-É diferente - reclamou a minha mãe.
-É diferente, porquê? - já não havia volta a dar, eu e a minha mãe entráramos numa das costumadas discussões teimosas que tínhamos quase sempre que estávamos juntos.
O meu Rui e o meu pai já não diziam nada e só se riam um para o outro, a gozar o prato, enquanto o meu cunhado acabava com a salada e a minha irmã remexia as azeitonas à procura de uma verde com pimento vermelho, as favoritas dela.
A minha sobrinha, sempre sossegada até aí, gritou:
-Ai Ai Ai, não consigo ouvir os bonecos - e levantou o som ao televisor. Foi quando demos conta de que ela ainda ali estava. E rimo-nos todos.
A minha mãe e a minha irmã foram à cozinha pôr a loiça suja e buscar a fruta e a sobremesa do meu cunhado, um pudim de ovos delicioso. Eu e o Rui desta vez não fizemos nada porque não tivemos tempo, com as andanças pelos bancos à procura do melhor spread.
Reuniram-se, então, as duas facções do costume, a das mulheres e a dos homens. O meu pai pediu à netinha que baixasse a televisão, agora que já não havia barulho. Depois disse, concordando:
-Acho que os compadres têm razão para se queixarem, afinal já há dois anos que não têm o filho com eles no Natal - de facto, há dois anos o Rui estava numa missão em Belgrado e não pôde voar por causa das tempestades de neve que encerraram todos os aeroportos dos Balcãs.
-Pois, só elas é que não percebem isso - murmurei eu desconsolado - vou ver se elas precisam de ajuda. Levantei-me, passei por trás do Rui e desapareci pela porta.
Antes de chegar à cozinha, ouvi a minha mãe dizer:
-Tudo bem, não me importo. Mas ai deles se não vierem na passagem de ano!
Ao que a mana respondeu:
-Vou avisar o Quim que é só para o réveillon, então. Ele pede sempre pra avisarmos o quanto antes por causa das encomendas dos ingredientes que são muitas e imprevisíveis nesta época.
Entrei com um sorriso de orelha a orelha.
-Então? Que temos hoje para nos adoçar a boca?
-Tu não mereces, ouviste! Vais-nos abandonar, desnaturado! - e deu-me um beijo. A minha irmã acaba sempre por aceitar bem as minhas escolhas.
Todos de volta à sala, o copo do Rui estava outra vez cheio mas eu nem me importei, preferindo saborear a vitória e o pudim descansado. A minha mãe também fez que não viu, mas eu sei que ela viu porque ela vê tudo.
Enquanto rapávamos o caramelo ao fundo das taças, cada um foi dizendo o que fazia para o almoço de Natal, já que não vínhamos à Consoada. Eu, como já sabem, é o tronco de Natal e não há melhor do que o meu. O Rui este ano quer experimentar fazer sonhos pela primeira vez. Fará logo uma grande porção de massa para que dê para as duas casas. Eu ajudá-lo-ei. A minha irmã e a minha mãe fazem as filhoses na véspera e o meu pai ocupa-se das fatias douradas, é ele o que come mais disso, mais ninguém aprecia muito. O meu cunhado prefere tratar dos salgados (rissóis, croquetes, pastéis de bacalhau, chamuças), que vai encomendar à Dona Amélia lá do trabalho, que os faz em casa e vende para fora, muito bons. Também é capaz de preparar umas tostinhas ou uns aperitivos de entrada com salsichinhas, tâmaras e presunto que ele gosta tanto (e nós também).
-Quem é que trata do velho este ano? - perguntou o meu pai referindo-se dissimuladamente ao Pai Natal para que a pequena Bia não percebesse (mais tarde, perguntaria no carro aos pais quem era o velho) - Sou sempre eu! - desabafou.
O meu cunhado ofereceu-se, depois de ter olhado para os outros homens e lembrado que só sobrava ele nessa noite.
Eu ofereci-me para ajudar a montar a àrvore de Natal no fim-de-semana seguinte, o que deixou as mulheres muito contentes (incluindo a Bia). E a mim também. Esta discussão ficou resolvida. A próxima será no Dia de Natal, à mesa, sobre a passagem de ano. Eu e o Rui já temos passagens e estadia para Paris, três noites com meia-pensão e passeio de barco no Sena. Vamos poder ver o fogo de artifício da Torre Eiffel da varanda do nosso quarto de hotel. Já sabíamos, mas combinámos previamente não revelar ainda nada, pois que duas discussões no mesmo dia é de mais.
IRIS IN:
END