Quinta-feira, 20.11.08

"O meu único ressentimento contra a natureza devia-se a não poder virar a minha Lolita do avesso e colar uns lábios vorazes à sua jovem matriz, ao seu desconhecido coração, ao seu nacarado fígado, às uvas marinhas dos seus pulmões, aos seus graciosos rins."

 

Humbert Humbert in Lolita de Vladimir Nabokov

 

Deixa-me ver-te nú. Completamente despido. Despido do casaco perfumado com a tua água de colónia masculina. Primeiro, tira o cachecol enrolado à volta do pescoço e faz-me crescer água na boca com a tua maçã de Adão provocante. Sem o casaco, a malha também não faz falta. Desliga-te da camisa engelhada pelo trato que o teu corpo lhe deu. Puxa para fora de ti as pernas das calças e com os teus dentes tímidos para mim sorri. Despe-te de tudo. Não te esqueças das meias. Quero adorar os teus pés sagrados - abençoado é o chão que pisam! Não tens luvas? Ainda bem porque assim posso ver o desenho das tuas mãos milagrosas. Oh homem, que doente que eu estou! Descola-te a pele e leva o cabelo e as pestanas e as sobrancelhas e as tuas patilhas viris e todos os teus pêlos junto com o couro para o cesto da roupa suja. Descobre a tua côr natural. Desfia a carne que te tapa sem medo de apanhar frio. Estão 37º mas parece-me mais. Arranca as veias e as artérias e todas as vias congestionadas e pendura-as no cabide do quarto, no bengaleiro atrás da porta, nos toalheiros e no sítio dos panos da loiça, até não haver mais nada. Enrola os nervos num novelo e guarda-os no baú das recordações. Deixa-me ver-te nú. Sem nada. Só coração e fígado e pulmões e rins. Põe o cérebro no caixote do lixo orgânico. Não precisas dele. Sente apenas o bater da minha substância na tua. Cada concerto nosso faz com que o caos se complete e recria o mundo. De novo, os ossos encaixam e as medulas restam sossegadas. Deixemo-nos ficar assim para sempre, despojados de alma, desprovidos de matéria corrupta, limpos de natureza. Só o universo e a possibilidade de qualquer coisa.



publicado por garçon às 20:13 | link do post | comentar | favorito

Quinta-feira, 13.11.08

"A autobiografia da minha mulher era tão desprovida de interesse quanto o seria a sua autópsia."

 

Humbert Humbert in Lolita de Vladimir Nabokov

 

Seria engraçado se, numa autópsia, se reconhecessem as marcas de felicidade e de tristeza que alguém sentiu. Uma série de alegres sinais recompensaria a operação fria do médico legista. Por exemplo, um coração dilatado a roubar espaço aos pulmões indicaria a asfixia sentida pela existência de muito amor. Quanto mais brilhante fosse o fígado, mais risos teriam saído daquele corpo ainda a sorrir. Se os miolos estivessem moles e soltos, seria porque em vida souberam encontrar a serenidade de um espírito são. Mas se os pulmões se encontrassem raquíticos e secos, das suas ramificações teria sido chupada toda a água insuficiente para manter escorridos os olhos de desespero. Quanto mais mirradas as tripas se apresentassem, maior a privação a que teriam sido obrigadas. Os rins da côr do fel colocariam em horrível evidência a prolongada existência de orgasmos nulos. Então, o médico fecharia a carne com tudo lá dentro e voltaria para casa depois de um dia mau de trabalho, assim, a pensar que mais cedo ou mais tarde iria encontrar alguém feliz outra vez.



publicado por garçon às 20:33 | link do post | comentar | favorito

Quarta-feira, 27.02.08
-- Trágicas, nuas, esqueléticas, sem pele,
Por trás de vós*, a Lua é bem uma caveira!...
Ó figos pretos, sois as lágrimas daquele
Que, em certo dia, se enforcou numa figueira!

Excerto de "Os Figos Pretos" in Só de António Nobre

*das figueiras


publicado por garçon às 20:35 | link do post | comentar | favorito

Terça-feira, 12.02.08
id="BLOGGER_PHOTO_ID_5166229006336024738" />"Pilar tirou do bolso a navalha e cortou a perneira da calça abaixo do bolso esquerdo. Jordan afastou o pano com as mãos e olhou para a coxa. Quinze centímetros abaixo da virilha uma saliência pontuda, roxa, lembrando um pequeno tumor, e quando tocou naquilo sentiu a fractura do osso da coxa de encontro à pele. A perna estendida formava um ângulo bizarro. Jordan olhou para Pilar. A expressão do seu rosto era a mesma do de Maria.
-Anda-disse-lhe ele.-Vai-te.
Pilar afastou-se de cabeça baixa, sem dizer palavra nem olhar para trás e Jordan pôde ver que os seus ombros estremeciam.
-Guapa-disse a Maria tomando-lhe as duas mãos.-Ouve. Não iremos a Madrid...
Então ela começou a chorar."

Ontem acabei de ler Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway. Gostei do livro, apesar de ser um bocadinho grande para tão pouco tempo narrativo (cerca de quatro dias na guerra civil de Espanha). A queixa prende-se mais ao facto de me fartar depressa do que estou a ler se levar muito tempo (dois ou três meses) porque, neste caso, os quatro dias passados na história são inteiramente preenchidos, isto é, são a acção em si mesma visto que narra a passagem do tempo desde a preparação até à execução de uma emboscada na montanha. Parece pouco tempo, mas Hemingway consegue transparecer a eternidade de um segundo quando se vive confinado a um território isolado numa guerrilha em que os perigos espreitam por todos os lados. Em quatro dias (e centenas de páginas), o Nobel faz o que de melhor sabe fazer: Mostra a humanidade que existe em cada pessoa, em especial as fraquezas. Demonstra que toda a gente é vulnerável e não há ninguém absolutamente forte ou invencível. Acho que nunca me vou esquecer de Pilar. Não é a protagonista mas tem um papel marcante em toda a história. É de arrepiar a descrição que faz aos outros do massacre que os republicanos aplicaram sobre os fascistas da mesma aldeia. Muito bem conseguido está também o capítulo em que o bando de El Sordo é dizimado, bem como todos os episódios de confronto entre as partes na guerra. Quando as armas não se viram contra o inimigo, é a construção psicológica das personagens que se trabalha e de modo, digo eu, quase perfeito. É fácil distinguir os sentimentos de uns pelos outros e como a desconfiança contamina as relações dentro da própria comunidade embora a ligação afectiva acabe sempre por vir ao de cima. A vida na guerra é tão frágil e tão pouco valiosa - ao ponto de ser sacrificada em prol da vitória - que matar o próximo torna-se fácil e ninguém pode dizer que está seguro esteja onde estiver enquanto houver guerra, essa é a grande verdade. E o final confirma isso mesmo, de forma ao mesmo tempo surpreendente e estúpida, como a própria guerra. Não gostei do fim, mas é mais porque não tem um happy end.


publicado por garçon às 22:44 | link do post | comentar | ver comentários (1) | favorito

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