"O meu único ressentimento contra a natureza devia-se a não poder virar a minha Lolita do avesso e colar uns lábios vorazes à sua jovem matriz, ao seu desconhecido coração, ao seu nacarado fígado, às uvas marinhas dos seus pulmões, aos seus graciosos rins."
Humbert Humbert in Lolita de Vladimir Nabokov
Deixa-me ver-te nú. Completamente despido. Despido do casaco perfumado com a tua água de colónia masculina. Primeiro, tira o cachecol enrolado à volta do pescoço e faz-me crescer água na boca com a tua maçã de Adão provocante. Sem o casaco, a malha também não faz falta. Desliga-te da camisa engelhada pelo trato que o teu corpo lhe deu. Puxa para fora de ti as pernas das calças e com os teus dentes tímidos para mim sorri. Despe-te de tudo. Não te esqueças das meias. Quero adorar os teus pés sagrados - abençoado é o chão que pisam! Não tens luvas? Ainda bem porque assim posso ver o desenho das tuas mãos milagrosas. Oh homem, que doente que eu estou! Descola-te a pele e leva o cabelo e as pestanas e as sobrancelhas e as tuas patilhas viris e todos os teus pêlos junto com o couro para o cesto da roupa suja. Descobre a tua côr natural. Desfia a carne que te tapa sem medo de apanhar frio. Estão 37º mas parece-me mais. Arranca as veias e as artérias e todas as vias congestionadas e pendura-as no cabide do quarto, no bengaleiro atrás da porta, nos toalheiros e no sítio dos panos da loiça, até não haver mais nada. Enrola os nervos num novelo e guarda-os no baú das recordações. Deixa-me ver-te nú. Sem nada. Só coração e fígado e pulmões e rins. Põe o cérebro no caixote do lixo orgânico. Não precisas dele. Sente apenas o bater da minha substância na tua. Cada concerto nosso faz com que o caos se complete e recria o mundo. De novo, os ossos encaixam e as medulas restam sossegadas. Deixemo-nos ficar assim para sempre, despojados de alma, desprovidos de matéria corrupta, limpos de natureza. Só o universo e a possibilidade de qualquer coisa.
"A autobiografia da minha mulher era tão desprovida de interesse quanto o seria a sua autópsia."
Humbert Humbert in Lolita de Vladimir Nabokov
Seria engraçado se, numa autópsia, se reconhecessem as marcas de felicidade e de tristeza que alguém sentiu. Uma série de alegres sinais recompensaria a operação fria do médico legista. Por exemplo, um coração dilatado a roubar espaço aos pulmões indicaria a asfixia sentida pela existência de muito amor. Quanto mais brilhante fosse o fígado, mais risos teriam saído daquele corpo ainda a sorrir. Se os miolos estivessem moles e soltos, seria porque em vida souberam encontrar a serenidade de um espírito são. Mas se os pulmões se encontrassem raquíticos e secos, das suas ramificações teria sido chupada toda a água insuficiente para manter escorridos os olhos de desespero. Quanto mais mirradas as tripas se apresentassem, maior a privação a que teriam sido obrigadas. Os rins da côr do fel colocariam em horrível evidência a prolongada existência de orgasmos nulos. Então, o médico fecharia a carne com tudo lá dentro e voltaria para casa depois de um dia mau de trabalho, assim, a pensar que mais cedo ou mais tarde iria encontrar alguém feliz outra vez.